Como mulheres brancas usam lágrimas estratégicas para silenciar mulheres racializadas

As queixas legítimas de mulheres marrons e negras não são páreo para as acusações de uma donzela branca em perigo

Carol Correia
5 min readAug 6, 2020

Escrito por Ruby Hamad (@rubyhamad) em 7 de maio de 2018 para o The Guardian. Ruby Hamad é jornalista e doutoranda na Universidade de New South Wales

Traduzido por Carol Correia apenas para disponibilizar essas colocações para os que apenas falam português.

Nota de tradução: utilizo a palavra racializadas para indicar pessoas que não são brancas, ou seja, pessoas que são chamadas de “racializadas”. Utilizo o termo “marrom” para substituir “brown”, pois brown costuma significar pessoas que não são negras, mas que são racializadas.

Fotografia: Caro/Alamy

O fato de vozes das mulheres racializadas estarem ficando cada vez mais altas e mais influentes é um testemunho menos das acomodações feitas pela cultura branca dominante e mais do seu próprio valor em uma sociedade que implicitamente — e às vezes explicitamente — quer que elas falhem.

No festival de escritores de Sydney, no domingo, a editora da Djed Press, Hella Ibrahim, transmitiu os minutos finais de um painel sobre diversidade, apresentando escritores do coletivo ocidental de Sydney Sweatshop. Uma das participantes do painel, Winnie Dunn, ao responder uma pergunta sobre os danos causados por boas intenções, usou as palavras “pessoas brancas” e “bosta” na mesma frase. Isso provocou a ira de uma mulher branca na plateia que interrogou os participantes do painel sobre “o que eles acham que têm a ganhar”, insultando as pessoas que “querem ler suas histórias”.

Em outras palavras, a mulher viu um ataque pessoal onde não havia um e decidiu lembrar aos participantes que, como membro da maioria branca, ela de fato tem seu destino em suas mãos.

“Saí daquele painel frustrada”, escreveu Ibrahim. “Porque, mais uma vez, uma boa convocação saiu dos trilhos, os brancos centraram em si e um painel de pessoas racializadas foi instruído a policiar seu tom para tornar sua mensagem palatável para um público branco”.

O trauma ataca mulheres negras e marrons de todas as direções. Há a dor inicial de ser submetida a racismo e discriminação de gênero, há o sofrimento adicional de não ser acreditada ou apoiada e de ter suas palavras e sua bravura aparentemente creditadas a outras pessoas.

E então há um tipo de trauma infligido a mulheres racializadas que muitas de nós consideramos os mais difíceis de divulgar, as que poucos parecem dispostas a admitir que realmente acontece porque é tão completamente normalizado que a maioria das pessoas se recusa a ver.

É o que o público do festival dos escritores estava demonstrando e o que a blogueira e escritora Luvvie Ajayi chamou de “instrumentalização cansativa das lágrimas de mulheres brancas”.

Para ser menos poética, é o trauma causado pela tática que muitas mulheres brancas empregam para reunir simpatia e evitar a responsabilização, virando a mesa e acusando o acusador.

“Quase todas as mulheres negras que conheço têm uma história sobre uma época em um ambiente profissional em que ela tentou conversar com uma mulher branca sobre seu comportamento e terminou com a mulher branca chorando”, uma mulher negra escreveu no Twitter. “A mulher branca não estava chorando porque sentia muito e estava profundamente arrependida. A mulher branca estava chorando porque se sentiu ‘intimidada’ e/ou porque uma mulher negra estava sendo muito dura com ela”.

Quando compartilhei esses tweets na minha página do Facebook perguntando às mulheres negras e marrons se isso já havia acontecido com elas, fiquei impressionada com o quão profundamente isso ressoou, levando uma mulher árabe a compartilhar esta história:

Uma mulher branca continuou tocando meu cabelo. Puxando meus cachos para vê-los se moverem. Esfregando o topo. Cheirando. Então, quando eu disse a ela para parar e reclamei para o RH e meu supervisor, ela reclamou que eu não era uma pessoa sociável ou que saiba lidar com trabalho em grupo e tive que deixar essa posição por estar ‘ameaçando’ uma colega de trabalho”.

Para os que duvidam, aqui está uma versão moderada deste truque em ação:

Jully Black e Jeanne Beker

Observe que é a mulher branca — Jeanne Beker — quem primeiro interrompe a mulher negra — Jully Black — que toma a interrupção em seu passo. Black continua falando com paixão e confiança, o que Beker interpreta como um ataque pessoal a ela, apesar de Black estar claramente falando em termos gerais (assim como Winnie Dunn). Beker, em seguida, tenta acabar com Black essencialmente a marcando como uma valentona.

Como Jully Black não parou e repetiu as palavras de Jeanne Beker: “Por que você está me atacando?” — essas palavras não passaram despercebidas em grande parte, apenas outra mulher racializada manchada como agressora por ousar continuar falando quando uma mulher branca queria que ela parasse.

Geralmente não termina assim. “As lágrimas das mulheres brancas são especialmente potentes… porque estão ligadas ao símbolo da feminilidade”, explica Ajayi. “Essas lágrimas estão saindo dos olhos daquela escolhida para ser o protótipo da feminilidade; a mulher que foi pintada como desamparada contra os caprichos do mundo. Aquela que obtém a maior proteção em um mundo que faz um trabalho de merda em geral de valorizar as mulheres.”

Ao relembrar minha vida adulta, surge um padrão. Muitas vezes, quando tentei falar ou confrontar uma mulher branca sobre algo que ela disse ou fez que me impactou negativamente, sou recebida com negações chorosas e acusações indignadas de que estou a machucando. Minha confiança diminuiu e passei a duvidar de mim mesma; eu ou me irrito em frustração por não ser ouvida (o que parece apenas provar seu ponto de vista) ou recuo imediatamente, me desculpando e consolando a própria pessoa que está me causando dor.

Não é a fraqueza ou a culpa que me obriga a me render. Pelo contrário, como escrevi recentemente, é a reputação manufaturada que os árabes têm de serem ameaçadores e agressivos que nos seguem por toda parte. Em uma sociedade que rotineiramente coloca pessoas imaginárias “de olhos arregalados, zangados e do Oriente Médio” nas cenas de crimes violentos que não cometeram, ter uma queixa legítima não é páreo para as lágrimas estratégicas de uma donzela branca em perigo, cuja inocência é tomada como garantido.

“Falamos sobre masculinidade tóxica”, adverte Ajayi, “mas há (também) toxicidade em exercer a feminilidade dessa maneira”. As mulheres marrons e negras sabem que somos, como escreve Miss Blanks, “vítimas imperfeitas”. Isso não significa que estamos sempre certas, mas significa que sabemos que, contra as acusações de uma mulher branca, nossas perspectivas quase sempre não são ouvidas de qualquer maneira.

Seja zangada ou calma, gritando ou suplicando, ainda somos percebidas como agressores.

Da mesma forma, as mulheres brancas estão igualmente conscientes de que sua raça as privilegia tão seguramente quanto a nossa nos condena. Nesse contexto, suas exibições chorosas são uma forma de violência emocional e psicológica que reforça o próprio sistema de dominação branca a que muitas mulheres brancas afirmam se opor.

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Carol Correia

uma coleção de traduções e textos sobre feminismo, cultura do estupro e racismo (em maior parte). email: carolcorreia21@yahoo.com.br